Poderia muito bem ser o argumento de um ótimo filme de ficção científica, ou então o devaneio de uma criança apaixonada por ciência, ou ainda um projeto vago na cabeça de algum cientista sonhador. Mas é apenas a realidade.
Após duas décadas de muito esforço científico e político, pesquisadores do mundo todo conseguiram a façanha de forjar um observatório com essas dimensões. É claro que não se trata de nenhum mega-Hubble: o projeto consiste em conectar de um jeito muito engenhoso oito radiotelescópios potentes espalhados pelo planeta em uma única rede, de modo que, na prática, funcionam como um único instrumento de abertura gigantesca.
Foi assim que nasceu o Event Horizon Telescope (EHT), ou Telescópio do Horizonte de Eventos. E ele pode ter acabado de obter a primeira imagem de um buraco negro da história.
Pesquisadores envolvidos estão otimistas de que a coleta de dados mais recente, realizada durante cinco noites entre 5 e 14 de abril, tenha alcançado a sensibilidade extrema necessária para se obter a tão buscada fotografia.
O projeto emprega tecnologias de ponta impensáveis há uma década com o propósito de fotografar o buraco negro com 4 milhões de vezes a massa do Sol que fica no centro da Via Láctea, o Sagittarius A* (Sgr A* — o asterisco é pronunciado “estrela”), e outro a 50 milhões de anos-luz daqui, no coração da galáxia M87.
Uma moeda na Lua
“A ideia de combinar observatórios de micro-ondas pelo mundo e aplicar isso aos buracos negros é bastante inovadora”, afirma Thiago Signorini, astrônomo e professor do Observatório do Valongo, no Rio de Janeiro. Signorini explica que, quanto mais distantes estiverem as antenas de rádio envolvidas e quanto menor for o comprimento de onda que elas captam, mais nítidas se tornam as imagens.
“A ideia de combinar observatórios de micro-ondas pelo mundo e aplicar isso aos buracos negros é bastante inovadora”, afirma Thiago Signorini, astrônomo e professor do Observatório do Valongo, no Rio de Janeiro. Signorini explica que, quanto mais distantes estiverem as antenas de rádio envolvidas e quanto menor for o comprimento de onda que elas captam, mais nítidas se tornam as imagens.
Normalmente, os radioastrônomos trabalham com comprimentos na ordem dos 21 centímetros. Já o EHT opera na faixa de 1,3 milímetro.
Isso resulta em uma capacidade inigualável de explorar objetos distantes nos mínimos detalhes. “A resolução é capaz de revelar um objeto do tamanho de uma moeda na superfície da Lua”, diz o astrônomo. Tamanha sensibilidade é necessária pois o projeto não quer só uma foto que mostre o brilhante disco de acreção, feito de enormes quantidades de matéria incandescente em órbita ao redor do buraco negro, atraída por sua monstruosa gravidade.
O foco do EHT é enxergar o horizonte de eventos, região escura que fica no centro do disco e marca o “fim da linha” do qual nada, nem mesmo a luz, consegue escapar. No caso do Sgr A*, o diâmetro dessa área, estimado em 44 milhões de quilômetros, equivale a cerca de 30 vezes o tamanho do Sol. “Pode parecer grande, mas a uma distância de dezenas de milhares de anos-luz, acaba se tornando uma coisa muito pequenina no céu”, afirma Signorini.
Some isso ao fato de que entre nós e o horizonte de eventos existem nuvens extremamente densas de gás e poeira: não fica difícil de entender por que enxergá-lo é tão complicado. Na verdade, na faixa visível do espectro da luz, é impossível obter uma fotografia como essa.
As boas expectativas se devem principalmente à adição do radiotelescópio mais sensível do mundo ao EHT — o Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (ALMA). Localizado no deserto do Atacama, suas 66 antenas multiplicaram em dez vezes a capacidade da rede.
Outra conquista recente foi um instrumento que fica no desolado Polo Sul.
Cada uma das instalações participantes teve de ser equipada com parafernalha eletrônica especial, incluindo relógios atômicos para que a sincronização fosse a mais precisa possível. Os dados coletados giram na casa dos petabytes e não poderiam ser transmitidos via internet: eles são armazenados em HDs que ao todo somariam a capacidade de armazenamento de 10 mil laptops.
Todo esse volume será processado ao longo dos próximos meses por supercomputadores do MIT e do Instituto Max Planck, na Alemanha. É preciso paciência: pode levar até um ano para que a foto esteja pronta e possamos contemplá-la. Mas o que importa é que, graças ao empenho da equipe em aumentar a potência do sistema, as perspectivas de alcançar o impossível vão se tornando cada vez mais palpáveis.
Coração das trevas:
Os astrônomos estão muito ansiosos pela imagem em alta resolução do horizonte de eventos. Além de ser uma segunda evidência direta da existência dos buracos negros (a primeira foi as ondas gravitacionais, detectadas em 2016), também é um prato cheio para testar a relatividade geral de Eistein — e descartar uma porção de teorias alternativas da gravidade.
“Chegamos em uma encruzilhada no que concerne a física perto dos buracos negros, onde temos mais avanços teóricos do que observações”, afirma Rodrigo Nemmen, especialista nesses objetos astronômicos e professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP.
Nemmen argumenta que a falta de evidências concretas sobre a natureza do horizonte de eventos, que ele chama de “coração das trevas”, dá liberdade aos físicos teóricos para que formulem teorias mirabolantes que não correspondem à realidade. “Ao observar o horizonte de eventos e confirmar — espero que confirmem — a teoria de Einstein, o EHT vai nocautear várias dessas teorias que estão aí.”
Para confirmar mais uma vez a relatividade geral, essa bisavó centenária que não se cansa de colecionar êxitos, basta que a imagem do coração das trevas revele uma estrutura circular. Segundo o astrônomo, se a forma geométrica for muito diferente de um círculo, algo como uma bola de futebol americano, por exemplo, será um indício de que algo está errado.
E então, simples assim, os cientistas terão de reformular os alicerces da física. “A natureza não é aquilo que queremos que ela seja: temos de adaptar nossas teorias para explicar aquilo que observamos”, resume Nemmen. Ele não descarta a chance de que as observações do EHT provoquem tais revoluções, mas acha improvável. “Se acontecer, vou perder noites de sono”, diz. Ele não seria o único astrofísico a ostentar olheiras de um roxo profundo.
Careca ou cabeludo?
Além de fornecer novas ferramentas para testar conceitos da física teórica, a imagem também terá impactos diretos em nossa compreensão dos próprios buracos negros. Segundo Nemmen, uma das possíveis ideias comprovadas é aquela que diz que os buracos negros não têm cabelos. É o que ele chama de “teorema do careca”.
Além de fornecer novas ferramentas para testar conceitos da física teórica, a imagem também terá impactos diretos em nossa compreensão dos próprios buracos negros. Segundo Nemmen, uma das possíveis ideias comprovadas é aquela que diz que os buracos negros não têm cabelos. É o que ele chama de “teorema do careca”.
“A metáfora diz que descrevê-los é muito simples, são necessários apenas três números: massa, giro (momento angular) e carga elétrica”, explica. Evidências apontam que o último fator é irrelevante, ou seja, os buracos negros são eletricamente descarregados.
Então, na prática, eles teriam menos cabelos que o Cebolinha — apenas dois. Momento angular e massa. “Há quem diga que os buracos negros têm mais cabelos, mas espero que a imagem destrua essas teorias mais complicadas que o teorema do careca”, comenta Nemmen.
Outra área de extrema importância que se beneficiará da foto do horizonte de eventos é o estudo da interação entre os buracos negros e suas galáxias hospedeiras — isso porque os cientistas acreditam que no centro de toda galáxia existe um buraco negro supermassivo. Apesar de avanços teóricos recentes terem delineado cenários bastante promissores, ainda se sabe muito pouco a respeito dos detalhes envolvidos no processo.
Bullying cósmico
“A ideia básica é que quando um buraco negro girando ao redor do próprio eixo engole gás eletricamente carregado e com campos magnéticos, essa combinação gera um tipo de tornado magnético”, explica o astrofísico. Boa parte do gás que supostamente cairia no horizonte de eventos acaba sendo expulso antes de chegar lá — e é arremessado para fora em feixes de partículas que os cientistas chamam de jatos relativísticos.
“A ideia básica é que quando um buraco negro girando ao redor do próprio eixo engole gás eletricamente carregado e com campos magnéticos, essa combinação gera um tipo de tornado magnético”, explica o astrofísico. Boa parte do gás que supostamente cairia no horizonte de eventos acaba sendo expulso antes de chegar lá — e é arremessado para fora em feixes de partículas que os cientistas chamam de jatos relativísticos.
“São como os feixes de água das mangueiras dos bombeiros, mas em velocidades próximas à da luz.” Só que, ao contrário dos jatos d’água, a temperatura dessas rajadas atingem milhões de graus Celsius e elas são lançadas a distâncias que podem superar em dez vezes o tamanho da própria galáxia.
Segundo Rodrigo Nemmen, se esses jatos encontrarem o ambiente mais frio da galáxia ao redor, causam um verdadeiro bullying cósmico."Eles barram o crescimento das galáxias, interrompendo a formação estelar dentro dos berçários de estrelas.”
Segundo alvo do EHT, o buraco negro no centro da galáxia M87 tem massa estimada em 6 bilhões de vezes a do Sol e é mil vezes mais massivo que o Sgr A*. O primeiro é um voraz produtor de jatos, enquanto nosso "vizinho" é bem mais tímido e não produz nada — as imagens também ajudarão os pesquisadores a entender o porquê.
Só que, infelizmente, tem um porém: nem um telescópio do tamanho do planeta Terra é capaz de revelar os segredos escondidos no interior do buraco negro. Eles são inacessíveis e talvez se mantenham para sempre ocultos.
"E é justamente ali onde estão os maiores mistérios da fisica, a singularidade central guarda o segredo para descobrir a teoria da gravitação quântica", diz Nemmen. "É interessante e paradoxal." Muitos acreditam que essa seria a chave para se chegar a uma Teoria de Tudo. Ainda estamos longe de unificar a física, mas não se engane — fotografar um horizonte de eventos é uma enorme conquista. E isso é só o começo para o EHT.
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